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            O entardecer estava chegando ao fim. O vento úmido e frio começava a circular sorrateiro pela vila, e parecia congelar o pulmão e os ossos de quem o respirasse.
            Com exceção dos guerreiros que eram obrigados a resistir ao frio, devido a tarefa de montar guarda ao redor e em pontos estratégicos da vila, tudo que os moradores desejavam naquele momento era entrar em suas cabanas, acender a lareira e aquecer-se com o fogo e o jantar quente que viria.
            Mesmo nesses dias frios, Bartolomeu, o avô de Lohan, era capaz de fazer com que as pessoas desejassem sair de suas aconchegantes cabanas logo após uma rápida janta, para acomodar-se ao redor de uma calorosa fogueira que este mesmo senhor gostava de acender no centro da vila. Essa fogueira não era acendida diariamente, como muitas crianças e adultos desejavam ansiosos que acontecesse, mas sim quando Bartolomeu desejasse.
            Como todo início de noite, as crianças se agitaram. Espiaram pelas janelas, e quando perceberam que ele estava lá, arrumando a lenha e começando a acender a fogueira, insistiram para seus pais que os deixassem ir, para ouvir mais uma das histórias que ele teria para contar. Muitos pais também foram, e a platéia que formou-se ao redor do “velho contador de histórias” foi consideravelmente grande.
            Após empilhar a lenha que Lohan e outros ansiosos garotos levavam para o velho montar a fogueira, Bartolomeu acendeu-a e aguardou o tempo da noite tornar o cenário aconchegante e misterioso, para que os interessados em ouvi-lo se aproximassem.
            Naquela noite o círculo formado ao redor da fogueira estava bem maior que o de costume, mas todos se ajeitaram confortavelmente, sentando-se em pedras ou troncos que eram utilizados como assento há anos.
            Depois de Bartolomeu sentar-se sobre a mesma velha pedra quadrada, acomodar-se a alguns metros da fogueira e cutucar a cabeça do sorridente Lohan, como costumeiramente fazia para brincar com o neto, ele olhou para as chamas e disse sobre o olhar silencioso dos muitos que estavam ali:
            - Acho que nunca vão esquecer a história que contarei hoje! – disse ele sorrindo abertamente. – Pelo menos, eu confesso que nunca esqueci os detalhes dela...
            - É SOBRE COMIDA? – gritou um pequeno e rechonchudo garoto. As outras crianças o vaiaram, enquanto ele mostrava a língua desafiadoramente.
            - Não, Jorba! – respondeu Bartolomeu sorrindo para o garoto. – Não é sobre comida... fala sobre uma trilha...
            - Uma trilha?? – perguntou Jorba num sussurro. Muitos soltaram um baixo “shiiiiuuuu”. Jorba entendeu o recado e colocou a mão sobre a boca.
            - Uma trilha que mostra algo que poucos gostariam de saber. Alguém faz idéia do que seja? – perguntou o velho, observando os rostos pensativos que surgiam.
            - Eu não gostaria de saber de muitas coisas... – resmungou uma menina chamada Marla.
            - É, Marla... – concordou Bartolomeu. – Há muitas coisas que não seria interessante descobrirmos. Mas existe uma que causa uma sensação de medo.
            - O QUE OS MONSTROS COMEM! - arriscou Jorba com um grito empolgado.
            - Comida de novo, Jorba? – resmungou um garoto chamado Rizzo.
            - Como alguns monstros podem nos comer, isso realmente dá medo... – disse Bartolomeu sorrindo. – Mas não é isso ainda.
            - Quem sabe... o futuro? Saber o futuro pode trazer coisas boas, e ruins... – disse Ulisses, o curandeiro da vila.
            - Eu gostaria de saber o futuro... – disse a neta de Ulisses, chamada Suryanne. Diversos “eu também” foram ouvidos.
            - Ulisses está no caminho certo... saber o futuro pode ser bom ou ruim, mas há algo no futuro de cada um de nós que é extremamente assustador – explicou Bartolomeu.
            - A morte! Todos temos medo dela, e poucos gostariam de saber como morrerão – falou com firmeza a filha de Bartolomeu, Judit.
            O velho contador de histórias apenas olhou para ela, que estava ao seu lado, colocou a mão sobre seu ombro e balançou a cabeça levemente concordando. Continuando em seguida sobre os olhares atentos:
            - Quem caminha por esta trilha, descobre no fim dela, como, quando, e onde morrerá... – completou Bartolomeu com a voz rouca.
            Apenas o barulho de grilos pode ser ouvido por alguns segundos. Muitos sussurros quebraram o silêncio e foram gradativamente aumentando.
            - Bem, agora que vocês já sabem sobre o que se trata a história de hoje, finalmente, vou contá-la.
            - Já era hora... – resmungou Jorba impaciente, cutucando Lohan.
            Bartolomeu começou:

            Há muito tempo atrás, eu conheci um jovem guerreiro chamado Malaquias. Ele vivia numa vila bastante distante desta aqui.
            Uma de suas funções era montar guarda perto de uma ponte que dava acesso a vila onde morava. Do outro lado a ponte, um bosque podia ser visto. Malaquias achava lindo o bosque visto a distância, e ficava imaginando o quanto bonito seria dentro dele. Desde que o viu pela primeira vez, desejou ir até ele, porém, o mago que dominava a região, havia proibido todos de atravessar a ponte para chegar do outro lado. Aquele era um dos limites, e deveria ser obedecido por todos que moravam em sua vila.
            Malaquias sempre seguira a risca as ordens do mago, mas o bosque exercia sobre ele uma poderosa atração. A curiosidade e a vontade que ele sentia em entrar naquele bosque eram imensas.
            E, em uma bela tarde de vigília perto a ponte, em que eu passava a cavalo pelo local para partir rumo à outra tarefa, Malaquias me pediu um favor. Ele havia resolvido contrariar a ordem do mago.
            Ciente de que não poderia aventurar-se pelo bosque, e deixar aquele ponto da vila desprotegido, Malaquias precisava de alguém para ficar em seu lugar durante o tempo em que estaria no bosque. Com receio que alguém de sua vila contasse ao mago que ele havia atravessado a ponte sem autorização, ele pediu para eu ficar de prontidão no lugar dele por algumas horas, e guardar segredo sobre seu passeio.
            Não vi nada de errado em atender ao pedido de um amigo. Como eu era um mensageiro conhecido por muitos daquela vila, eu poderia circular por ali livremente sem que ninguém estranhasse. Combinamos que eu guardaria o segredo, e o substituiria enquanto estivesse fora.
            Ele me entregou uma trombeta e me orientou a soprar alto e incessantemente caso eu percebesse algo de errado. Aquele era o sinal para que outros guerreiros fossem até o local, e para que ele voltasse o mais rápido possível.
            Acertados os detalhes, ele virou-se sorridente e se foi em passos apressados. Observei ele atravessar a ponte e diminuir de tamanho, até perdê-lo de vista na paisagem do bosque. Fiquei lá por volta de três horas, aguardando seu retorno. Acreditem, para um mensageiro que está sempre em movimento, as três horas de espera corresponderam ao dobro.
            Quando eu começava a imaginar que algo poderia ter acontecido de errado, percebi que ele estava voltando. Conforme ele se aproximava, percebi que andava vagarosamente, e estava triste e pensativo.
            Assim que ele parou diante de mim, absorto em seus pensamentos, perguntei a ele o que tinha acontecido, para saber o porquê de ele estar daquele jeito.
            Gaguejando, ele respondeu que não sabia ao certo, mas que tinha certeza de uma coisa horrível.
            Como ele ficou mudo em seguida, insisti para me contar mais detalhes.
            Malaquias, mesmo aturdido, me falou que ao entrar no bosque encontrou uma bela trilha. Ela serpenteava para dentro da mata, contornando lindas árvores e um magnífico lago. Nesse momento, ele me olhou nos olhos profundamente, e frisou que no início, andar sobre aquela trilha parecia um sonho, mas que no fim, tornou-se um pesadelo.
            Como ele havia novamente parado de falar, chacoalhei-o levemente, e pedi para continuar. Ele disse que no fim da trilha, encontrou uma poça. Ao lado da poça, havia uma placa de madeira. Entalhada na madeira, havia a seguinte frase: Fim da trilha, fim da vida. Quando leu a mensagem, Malaquias imaginou que havia caído em uma armadilha.
            Pensou que a qualquer momento criaturas iriam surpreendê-lo e matá-lo. Puxou a espada rapidamente da cintura e aguardou em posição de defesa. Olhou ao redor, a procura de inimigos, mas eles não apareceram.
            Ele guardou a espada novamente na cintura, e aproximou-se da poça. Observou que após ela, não havia nada além da mata. Ainda sem entender, e curioso como estava, ajoelhou-se sobre ela para fitar a água límpida, que refletia seu rosto como um espelho. E, gaguejando e quase sem voz, disse que pode ver, ao sumir seu rosto do reflexo da água, como, quando e onde morreria.
            Foi nesse momento que ele novamente parou. Olhou para mim e ao seu redor, como se conformasse com algo, e, com uma expressão de dor e medo em sua face, sussurrou: “Não há o que fazer. Vi naquela poça esta conversa. Não há como evitar. Bartolomeu... corra... não vi você morrendo, acho que você poderá se salvar.
             Antes que eu conseguisse reagir ao que eu acabara de ouvir, Malaquias começou a gritar: “NÃO OUVIU O QUE EU DISSE? CORRA, MEU AMIGO! SUBA EM SEU CAVALO E FUJA DAQUI!
            Tão confuso quanto as palavras do jovem guerreiro, reagi por impulso. Corri, levando a trombeta. Montei em meu cavalo e ao olhar para trás, vi apenas que um pequeno grupo de orcs surgiu do barranco que margeava o rio, e disparou flechas na direção do jovem e estático guerreiro.
            Malaquias estava de costas para a margem, mas não precisou olhar para saber de onde surgiam seus inimigos. Ele sabia. Ficou parado. Tive a certeza de que essa cena ele já havia visto na poça d’água do fim da trilha. Ele sabia também o que viria a seguir: três flechas o acertaram nas costas, e ele caiu com os olhos arregalados.
            Enquanto cavalgava, assoprei a trombeta. Flechas passavam zunindo ao meu lado, mas nenhuma delas me pegou. Como eles estavam sem montaria, pude me afastar do grupo de orcs que tentava atacar a vila no fim da tarde.
            Continuei a assoprar a trombeta enquanto cavalgava em direção a vila de Malaquias, até que outros guerreiros se aproximaram. Contei a eles sobre a investida dos orcs, e acompanhei o massivo grupo que havia se formado para rechaçar os invasores.
            Quando chegamos ao local, os orcs não estavam mais ali. Somente o corpo de Malaquias, estendido de barriga para baixo, e com três flechas cravadas em suas costas. Certamente as criaturas recuaram ao perceber que eu alertaria os outros guerreiros. Dificilmente tentariam uma nova investida naquele dia, pois sabiam que os guerreiros ficariam alerta e se distribuiriam em grupos maiores para varrer toda a redondeza.
            Decidi ficar na vila até o dia seguinte, até o fim do triste enterro do guerreiro. Prestar essa homenagem a esse amigo era o mínimo que eu poderia fazer, pois além da consideração que eu tinha por ele, ele havia me salvado, mesmo sabendo que não poderia ser salvo. Acabei não contando a ninguém o que Malaquias viu na poça, e tudo o mais que aconteceu.
            Naquela manhã, todos me agradeceram por assoprar a trombeta e alertá-los, mas para ser sincero, eu parecia não ouvir o que as pessoas ao meu redor diziam. Eu conseguia pensar somente na trilha.
            No início da tarde, peguei meu cavalo e parti. Eu estava decidido a encontrar a trilha e olhar para a poça, para ver como, quando e onde eu morreria. Essa vontade me enchia de insegurança, mas tive certeza de que se não fizesse isso naquele momento, eu teria que voltar até lá para descobrir em outro dia. Caso contrário eu não conseguiria mais dormir. Os pensamentos ansiosos me cercariam novamente, como na noite anterior.
            Fui até o local onde Malaquias havia sido morto, atravessei a ponte, cavalguei até o bosque, e, sem dificuldade, encontrei a linda trilha. Montado sobre o cavalo, vagarosamente entrei nela e me senti enfeitiçado. Aquele foi o local mais bonito que vi em toda minha vida. Talvez pela circunstância em que Malaquias o descrevera, preste a morrer, ele não o fez como deveria.
            A brisa trazia um certo brilho. Como se minúsculas luzes estivessem sendo carregadas por ela. Entre as frestas das folhas das árvores, feixes de luz pareciam sólidos, iluminando o local onde terminavam de uma forma que chegava a ofuscar os olhos. O lago que apareceu ao lado da trilha, era surreal. A água não se mexia, era azul escura e estava estática. O verde das árvores e plantas ao redor da trilha era um verde mais vivo do que o normal. As flores então, eram lindas. Vi pequenos esquilos, lebres, pássaros e borboletas passeando sem receio. A terra que o cavalo pisava era muito macia, pois eu senti que ele afundava ao firmar as patas. O silêncio era absoluto. Nem minha própria respiração eu conseguia ouvir.
            E foi assim, deslumbrado, que cavalguei até o fim da trilha. Lá encontrei a placa e a poça. Me sentindo anestesiado, desci do cavalo e me aproximei.
            A frase Fim da trilha, fim da vida, entalhado na placa me trouxe de volta a realidade. Eu realmente queria saber? Será que a poça me mostraria como, quando e onde eu morreria? Ou ao olhá-la, algo de ruim necessariamente aconteceria comigo? Afinal, será que Malaquias morreu por olhar a poça? Ou havia sido uma coincidência ele ser morto pelos orcs naquele dia e momento?
            Me sentindo um pouco confuso, olhei para trás. Pensei em montar novamente em meu cavalo e voltar. Ir embora e tentar esquecer tudo aquilo talvez fosse a melhor opção, mas isso seria impossível. Aquele lugar era inesquecível. Muito especial para ser ignorado. Tomei coragem novamente, e decidi assumir o risco.
            Caminhei até a poça e me abaixei sem pestanejar, colocando o rosto sob a água límpida. Em poucos segundos, o reflexo do meu rosto sumiu e deu lugar a visão, de como, quando e onde eu morreria.
            Satisfeito com o que eu vira, levantei sorrindo. A paz encheu meu coração, e tive certeza de que pelo menos para mim, ver como, quando e onde eu morreria, foi a melhor experiência de minha vida. Pois vi que mesmo sabendo de algo ruim, como os detalhes da minha própria morte, percebi que morrer em paz pode ser uma das melhores coisas da vida. 

            Neste momento, Bartolomeu calou-se. A história do dia tinha chegado ao fim, mas as pessoas esperavam que ele contasse como, quando e onde morreria, mas ele não fez. Ficou calado, aguardando a reação da platéia, que no fim, foi o próprio silêncio.
            - Então? Não, gostaram? – perguntou o “velho contador de histórias” com simplicidade.
            - Sim, vovô... – respondeu timidamente Lohan. – Mas, o senhor não pode nos dizer o que viu na poça?
            - É isso que desejam? – perguntou Bartolomeu abrindo um velho sorriso maroto.
            Diversas respostas foram ditas simultaneamente: “Sim”, “claro”, “Por favor, continue” e até mesmo “Não me mate de curiosidade, rapaz”, essa última dita por Jorba, fez Bartolomeu balançar a cabeça concordando e dizer:
            - Tudo bem! Primeiro contarei como morrerei... depois é que, saberão onde e quando...
            As pessoas se entusiasmaram. Bartolomeu continuou:
            - Como eu farei agora, peço que todos deitem no chão e olhem para as estrelas, que estão lindas no céu.
            O velho deitou, e todos o copiaram. Quando Bartolomeu percebeu que todos estavam deitados, continuou:
            - Assim será como morrerei: olhando para as estrelas. Observem cada uma delas lentamente e em silêncio, e percebam como a paz invade nossos corações...
            Bartolomeu sorriu, mas ninguém percebeu, pois olhavam para o céu. Somente mexendo a boca, sem emitir nenhum som, despediu-se de todos que amava. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Para onde quer que ele fosse, sentiria falta de noites como essas e de cada uma das pessoas que estavam ao seu redor. Poucos perceberam, sobre a pacata luz das chamas, o último suspiro de Bartolomeu quando o seu coração parou.
            Como era de costume, quando a história chegava ao fim, Bartolomeu pedia para todos que estavam presentes ajudá-lo a dar um nome a ela. Geralmente, era ele quem falava após ver a reação da platéia, fossem gargalhadas, risos ou múrmuros de surpresa, ou até mesmo os suspiros ou o enxugar de lágrimas, como as que cairiam em breve naquela mesma noite. Mas muitos minutos se passaram, enquanto todos contemplavam as estrelas. Aguardaram a voz rouca de Bartolomeu chamá-los novamente a realidade, mas ela não veio. Demoraram a perceber, que o “velho contador de histórias” não estava mais vivo.
            Essa foi a última história contada por ele, e certamente, a que mais desejou demorar a contar.

Fim

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